Dia Internacional da Vida Selvagem – A perspetiva de um médico veterinário

A propósito do Dia Internacional da Vida Selvagem, aproveitámos para falar com o médico veterinário Alexandre Azevedo, um médico veterinário com vasta experiência no cuidado e na proteção da vida selvagem. Desde o seu início como médico veterinário em 2005, ele tem trabalhado com espécies selvagens em cativeiro, mas também colaborou com projetos como o do Lince Ibérico, que fazem um trabalho importante na reintrodução de uma espécie no seu habitat natural. Atualmente, além de médico veterinário do Zoo de Lagos e do Krazy World, no Algarve, é também residente do Colégio Europeu de Bem-Estar e Comportamento Animal. Junta-te a nós nesta conversa enquanto celebramos a riqueza e a diversidade da vida selvagem e nos comprometemos a fazer a diferença para um futuro mais sustentável.

Relativamente à tua vida profissional, queres dar-nos um breve olhar sobre o que é o teu dia-a-dia enquanto médico veterinário de animais menos convencionais? De onde veio o teu interesse pela medicina de animais selvagens e pela conservação?

Eu nasci em África, e embora tenha vivido lá apenas oito anos, foi o suficiente para que algumas experiências da infância cultivassem um enorme fascínio pelos animais selvagens. Já em Portugal, fiz parte de uma geração que viveu num tempo em que os documentários nos presenteavam continuamente com novas descobertas incríveis sobre um mundo até então desconhecido: a vida dos animais selvagens. Mas nem tudo era positivo. À medida que eu crescia, ia-se desvendando para o mundo a escala dos impactos da atividade humana nos ecossistemas, e a necessidade de intervir para salvar espécies da extinção tornava-se urgente. Penso que esses foram os fatores que mais determinaram as minhas escolhas.

Quanto à vida profissional, se tudo corre como esperado, passo os dias a estudar, a elaborar planos de medicina preventiva e protocolos de quarentena, e a tentar fazer a ligação entre a prática diária e a investigação. Tenho uma forte convicção de que há muito conhecimento valioso decorrente do nosso trabalho diário que se perde, por não ser recolhido numa forma adequada e facultado a quem faz investigação, e tento trabalhar de forma a mudar isso. Das tarefas de rotina, as mais agradáveis são as inspeções de rotina aos parques. Percorrer as instalações de um zoo moderno na companhia de tratadores experientes é sempre um momento de aprendizagem, aliada a uma das coisas que mais gosto de fazer, observar animais. Quando as coisas correm mal, tenho casos clínicos e preciso de ir para o terreno. Se correrem ainda pior, tenho necrópsias. Felizmente, o excelente trabalho que é feito nos parques zoológicos atualmente faz com que essas ocorrências sejam raras.

O Dia Internacional da Vida Selvagem deste ano tem um foco particular na inovação tecnológica e digital. Para ti, enquanto veterinário que se dedica em grande parte à medicina de espécies selvagens, como é que achas que a inovação tecnológica e novos meios digitais estão a ser aplicados no âmbito da medicina de animais selvagens?

O “World Wildlife Day” é um evento anual celebrado no dia 3 de março com o objetivo de nos consciencializar quanto à importância do animais e plantas selvagens do mundo e destacar a importância da conservação da biodiversidade. O objetivo é promover a proteção e preservação dos habitats e espécies selvagens, e combater ameaças como a perda de habitat, a caça ilegal, o comércio ilegal de vida selvagem e as mudanças climáticas. Foi estabelecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2013 e a data foi escolhida para coincidir com a adoção da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (CITES) a 3 de março de 1973. Realmente, este ano o tema é: “Connecting People and Planet: Exploring Digital Innovation in Wildlife Conservation.” A frase escolhida é inteligente, porque foca a inovação digital na conservação, com enorme potencial, mas também a forma como as ferramentas digitais tem potenciado a comunicação. Hoje sabemos em tempo real o que acontece do outro lado do planeta, e a ligação entre as nossas ações e os nosso impactos são cada vez mais difíceis de ignorar.

A inovação tecnológica já vem revolucionando este campo de várias formas. Por exemplo, se no caso das espécies domésticas os avanços na tecnologia de imagem digital têm melhorado a nossa capacidade de diagnosticar e tratar lesões e doenças, no caso das espécies silvestres onde ainda nem sequer conhecemos muitas vezes a anatomia, o seu potencial é ainda maior. Outros exemplos incluem avanços na cromatografia líquida e espectrometria de massa, que têm permitido avanços incríveis nas áreas da endocrinologia e fisiologia de muitas espécies, e as técnicas de diagnóstico molecular, que tem melhorado significativamente a nossa capacidade de deteção de agentes infeciosos. A revolução das tecnologias digitais talvez tenha sido mais subestimada nas ultimas décadas, mas com o surgimento da inteligência artificial, o seu potencial tornou-se muito evidente.

Quanto ao potencial da inovação digital, há um exemplo interessante do mundo dos parques zoológicos. No final do século passado os parques sentiram a necessidade de desenvolver um software de gestão dos seus processos internos. A versão inicial era basicamente uma base de dados que continha todos os animais, a sua identificação, algumas tarefas e informação sobre alguns processos. No entanto, hoje em dia é uma base de dados online, que contém em tempo real toda a informações sobre os animais, de praticamente todos os parques, e um recurso incrível para quem gere os parques, mas também para quem queira fazer investigação. Sem esta ferramenta, a informação sobre o que acontece num zoo português seria inacessível a um zoo no Noruega, por exemplo. Este é só um dos muitos exemplos em que as plataformas de comunicação digital estão a facilitar a colaboração entre veterinários de vida selvagem em todo o mundo.

E relativamente à medicina da conservação, seja em situações in situ ou ex situ, achas que as inovações digitais estão a mudar a forma como nós pensamos e abordamos a conservação (por exemplo, com sistemas de rastreamento por GPS ou análise de dados por inteligência artificial)?

Sem dúvida. As inovações digitais estão a transformar a forma como pensamos e abordamos a medicina da conservação, tanto em situações in-situ quanto ex-situ. Os sistemas de seguimento por GPS, por exemplo, permitem-nos monitorizar os movimentos e o comportamento de animais selvagens em tempo real, fornecendo informações cruciais sobre áreas de distribuição, padrões de migração e uso de habitat. Muitos equipamentos incluem já sensores de vários tipos, que permitem medir a frequência cardíaca, a temperatura, ou até mesmo identificar comportamentos específicos dos animais. Isso não só nos ajuda a compreender melhor as necessidades das espécies em termos de conservação, mas também a identificar e mitigar problemas de saúde e ameaças, como a perda de habitat e a caça furtiva. Outras inovações como a análise de DNA ambiental (eDNA) têm também um potencial transformador nos esforços de conservação. Por exemplo, a extração e análise de material genético deixado pelos organismos no ambiente (solo ou água) permite detetar e rastrear a disseminação de patógenos e espécies invasoras. Além disso, a análise de dados por meio da inteligência artificial e machine learning está a revolucionar a forma como interpretamos grandes conjuntos de dados. Essas ferramentas podem identificar padrões complexos e prever tendências, permitindo-nos tomar decisões informadas e desenvolver estratégias de conservação mais eficazes, seja ao nível da epidemiologia e medicina, seja ao nível da gestão de populações.

Tendo em conta as desigualdades que há no mundo no acesso à educação e no acesso aos meios digitais, como é que os países mais desenvolvidos podem ajudar a diminuir essa desigualdade? Achas que os novos médicos veterinários que estamos a formar estão já capacitados para a utilização destas novas tecnologias, ou achas que ainda há um gap de conhecimento grande, mesmo nos países mais desenvolvidos, na formação dos médicos veterinários para a tecnologia?

As desigualdades no acesso à educação e aos meios digitais são questões urgentes que exigem uma resposta global. Além disso, quando se trata de fauna selvagem, os recursos são normalmente abundantes nos países mais desenvolvidos, onde já há pouca fauna, e são escassas onde a fauna ainda existe. Os países mais desenvolvidos têm portanto uma responsabilidade acrescida nestas disparidades. O facto de muitas vezes já não ser possível recuperar património natural no seu território, faz com que tenham que dependam de países em desenvolvimento para atingir as metas globais de sustentabilidade. A colaboração e o apoio esses países é essencial, e pode manifestar-se sob a forma de apoio financeiro e técnico para infraestrutura digital, parcerias e colaborações entre instituições educativas, programas de capacitação e formação, ou simplesmente a disponibilização de conteúdo educacional digital de alta qualidade e recursos de aprendizagem online. Estas colaborações podem não só ajudar atenuar o gap digital, mas também funcionar como uma medida que permite aos países desenvolvidos compensar de alguma forma a destruição que já causaram.

No caso do ensino da medicina veterinária, eu não classificaria como um gap, mas talvez um ligeiro atraso. Não sendo uma área do conhecimento posicionada na área da tecnologia e tecnologia de informação, é natural que a adoção de ferramentas tecnológicas e digitais seja mais lenta do que, por exemplo, numa qualquer área da informática ou engenharia. No entanto, se olharmos para tecnologias recentes como a tomografia e a ressonância magnética, eu diria que a adoção em larga escala até foi surpreendentemente rápida, tendo em conta o mercado.

Como é que a comunidade académica pode contribuir para minimizar o gap digital?

No que diz respeito a tecnologias digitais, e especificamente às ferramentas de inteligência artificial, eu acredito que o cenário é diferente das evoluções tecnológica que mencionei acima, por dois motivos. Primeiro, a sua utilização está a tornar-se transversal a todos os aspectos da nossa vida. Segundo, vai ser inevitavelmente utilizada por médicos veterinários, alunos e professores. Eu gosto da analogia entre a inteligência artificial e a calculadora, que também foi controversa na altura. Olhando para trás, faria algum sentido atrasar a implementação do uso da calculadora? Eu acho que não, até porque a generalização era inevitável. Eu acho que o mesmo vai acontecer com a inteligência artificial, e que é reponsabilidade das instituições de ensino superior orientar essa implementação de forma a que os seus alunos e professores a possam usar de forma ética, responsável e produtiva. Quanto ao gap digital entre países mais e menos desenvolvidos, as inovações digitais facilitam a oferta formativa online, bem como a comunicação à distância, o que viabiliza de uma forma sem precedentes as colaborações internacionais.

Sei que tens um interesse particular por temáticas relacionadas com ética e bem-estar animal. Como é que achas que podemos colocar a inovação digital, seja a inteligência artificial sejam outras ferramentas tecnológicas recentes, ao cuidado da ética e do bem-estar animal? Que mais valias podem ter os avanços tecnológicos e mais… Podem eles próprios ser fonte de novos desafios éticos?

A integração da inovação digital tem um enorme potencial na medicina veterinária em geral, mas muito particularmente na área do bem-estar animal. Além de permitir a análise de grandes conjuntos de dados e diagnósticos mais rápidos, a integração digital permite também melhorar a forma como cuidamos dos animais. Por exemplo, tecnologias como sensores de ambiente e sistemas de monitoramento podem ajudar a otimizar as condições de vida em ambientes de cativeiro, garantindo conforto e bem-estar para os animais. Estas ferramentas tecnológicas e digitais aplicam-se tanto a animais silvestres como domésticos e permitem identificar padrões comportamentais muito subtis e detetar precocemente problemas de bem-estar. O potencial de comunicação destas ferramentas através de aplicativos móveis e plataformas online, pode também ser usado para educar pessoas sobre comportamento animal e bem-estar, promovendo uma cultura de responsabilidade e respeito pelos animais.

Claro que existem desafios éticos associados a esta transformação, como por exemplo as questões associadas à privacidade, à propriedade intelectual, à possibilidade de viés (erro), e ao distanciamento entre os seres humanos e os animais. No entanto, na minha opinião estas questões são resultantes do uso indevido ou irresponsável, e não da existência das ferramentas e do seu uso. Daí a nossa responsabilidade acrescida em fomentar a utilização responsável e ética. Além disso, há uma questão ética mais profunda, que na minha opinião se sobrepõe: estando disponíveis estas ferramentas, seria ético não as utilizar para melhorar a vida dos animais e das pessoas?

Para terminar, o que gostarias de ver implementado num futuro próximo que não exista ou que até pode existir mas não seja utilizado de uma forma mais abrangente e que achas que é prioritário na inovação tecnológica na tua área de atuação?

Na área dos zoos, gostava muito de ver uma evolução do módulo médico-veterinário do software de gestão animal que mencionei, de forma a permitir o acesso livre de investigadores aos dados de saúde animal dos zoos de todo o mundo. Do ponto de vista da saúde global, seria uma ferramenta de epidemiovigilância muito valiosa, e permitiria uma grande aceleração na compilação e comunicação do conhecimento científico-veterinário em muitas espécies. Na área da conservação, gostaria de ver uma evolução das normas que regulam o bem-estar dos animais envolvidos nas ações de conservação, bem como parcerias e colaborações mais próximas entre as áreas da medicina veterinária e da biologia da conservação, quer no campo, quer ao nível do ensino superior. Especificamente em relação às ferramentas de inteligência artificial, gostaria de ver ultrapassadas as questões sobre se devemos usá-las ou não, e que as instituições de ensino superior investissem em dotar os docentes e alunos de competências direcionadas ao seu uso responsável e ético. Finalmente, ao nível global, gostava de assistir a uma maior adesão da sociedade e da governação aos objetivos ambientais e climáticos, e aos princípios da liberdade e igualdade entre povos, que são condições fundamentais para a preservação da biodiversidade e para um futuro sustentável.

À medida que encerramos esta entrevista esclarecedora com o Dr. Alexandre Azevedo, somos lembrados da importância vital de unir inovação tecnológica e consciência ambiental para enfrentar os desafios da conservação da vida selvagem.

Neste Dia Internacional da Vida Selvagem, é fundamental reconhecer o papel crucial que a tecnologia desempenha na proteção dos habitats naturais e na promoção de práticas de conservação sustentáveis. No entanto, com esses avanços vem a responsabilidade de garantir que a tecnologia seja utilizada de forma ética e responsável.

Ao adotarmos uma abordagem integrada que une inovação tecnológica com consciência ambiental, podemos enfrentar os desafios da conservação da vida selvagem e criar um futuro mais sustentável para todas as espécies do nosso planeta. Juntos, podemos fazer a diferença na proteção e preservação do nosso mundo natural para as gerações futuras.

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